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terça-feira, 4 de novembro de 2014

Comunidade cristã e missão: mútua exigência



O teólogo Adolph von Harnack, no clássico «A missão e a expansão do cristianismo nos três primeiros séculos», publicado em Berlin, em 1924, já estabelecia um nexo explícito entre missão e Igreja local, ao afirmar que o ponto de partida da missão é sempre uma Igreja local, com característica próprias que envia seus membros a pregar o evangelho, e o ponto culminante é o surgimento de uma nova Igreja local, feita de pessoas, símbolos e preocupações próprias da nova terra, uma comunidade com características próprias – liturgia, espiritualidade, teologia, disciplina – era o ponto de chegada e o coroamento do esforço missionário.
     Olegário González de Cardedal assim dispõe, ao comentar a obra de Harnack: «A pregação cristã na sua origem tendia evidentemente a anunciar o ocorrido com Jesus de Nazaré, como havia proclamado a chegada do Reino de Deus, como havia sido crucificado pelas autoridades e logo ressuscitado por Deus e como Deus outorgava o perdão dos pecados aos que nele acreditavam. A fé era adesão aos que haviam acreditado; com isso aumentava o número dos eleitos, acresciam novos membros à Igreja, esposa celeste do cordeiro, completava-se o corpo de Cristo. “No entanto, esta pregação, desde o princípio, fundou comunidade na terra e se propôs como objetivo formar um grupo com os que acreditaram em Cristo” (A. von Harnack, 1. c., 445). As comunidades que surgem se parecem, num primeiro momento, ao que são as sinagogas e comunidades judaicas no Mediterrâneo e, em pate, às escolas dos filósofos. Em seguida se percebe a clara diferença a respeito de todas elas, pela realidade teológica que as anima, pela vida crística que da qual vivem e a que se conformam; pela experiência pneumática que as sustenta, pela solidariedade absoluta entre seus membros e, finalmente, pela nova moral que praticam» (O. G. de Cardedal, Génesis de una teología de la Iglesia local…, p. 55-56).
     São dois os motivos que diferenciam a ação missionária cristã dos outros grupos:

     1) a integração teológica na Igreja universal, na Igreja de Deus, comunidade de salvação criada por Deus em Cristo e no Espírito Santo e
     2) a constituição de uma comunidade local, concreta, na qual a pertença concede uma nova identidade ao sujeito e uma nova compreensão da sua passagem pelo mundo.
     Assim tudo o que se abraçava da Igreja de Deus, corpo de Cristo e templo do Espírito Santo não era uma realidade abstrata, distante, mas algo concreto, palpável, acessível na comunidade de Corinto (Grécia), de Salamanca (Espanha), da Guarda (Portugal), da Campanha (Brasil). Harnack chama a isto de «admirável concepção prática estabelecer correspondência entre a Igreja universal, como comunidade ideal e a comunidade particular, de forma que o que valia daquela também se pudesse dizer desta: a comunidade de Corinto, de Éfeso etc., é a comunidade de Deus» (A. von Harnack, 1. c., 448). Realidade teológica e solidariedade histórica estavam unidas, cada pessoal era algo sagrado para Deus e absoluto para os irmãos. Este sentido absoluto de pertença individual, este existir para alguém concreto com dignidade com dignidade inquestionável, de não estar perdido na solidão do deserto, mas saber-se importante para Deus na medida em que experimento o amor real de uma comunidade foi o fermento de conversão nas origens do cristianismo.
     O historiador André-Jean Festugière, afirma: «Este é o fato novo, a novidade total do cristianismo. Isto é o que comoveu os corações. Isto é o que converteu. Não a palavra, mas o exemplo. Ou melhor, a verdade da palavra provada pelo exemplo. As sublimidades da doutrina passavam, sem dúvida, pelo alto da cabeça, como ainda passam. Mas, eles viam o espetáculo desta caridade incessante e se beneficiavam dele. Se isto não tivesse existido o mundo ainda seria pagão. E no dia em que já não exista, o mundo voltará a ser pagão» (A. Festugière, La esencia de la tragedia griega, Barcelona 1986, pp. 92-93).
     E eu pergunto: não estará aí a causa do nosso fracasso missionário? Anunciamos a correta verdade teológica, mas não edificamos verdadeiras comunidades concretas, locais, palpáveis, que expressem o valor de cada pessoa que nela toma parte.

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