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sexta-feira, 3 de junho de 2011

Na calada das noites

As noites que emolduram o dia 24 de maio de 2011 jamais deveriam ser esquecidas. Deveriam ficar gravadas na história do país que herdou o seu nome de uma árvore em franca extinção. Contudo, se nós esquecermos, o planeta não se esquecerá, pois serão as gerações futuras a sofrer as mais trágicas consequências das artimanhas desencadeadas nestas duas noites.
Na primeira, nas primeiras horas do dia 24 de maio de 2011, armavam-se em Ipixuna/PA uma tocaia, numa estrada de terra por onde, ao raiar do dia, deveriam passar José Cláudio Ribeiro da Silva e sua mulher, Maria do Espírito Santo da Silva.
O casal de líderes camponeses integrava o projeto de assentamento agroextrativista Praialta-Piranheira, criado em 1997 para trabalhar especialmente com produtores de castanha de maneira sustentável, sem agredir a floresta, mãe-nutriz do povo amazônico. Praialta-Piranheira é onde existe uma das últimas reservas de castanha-do-pará. Essa reserva, em razão da grande riqueza em madeira, era alvo de cobiça de madeireiros e grileiros.
José Cláudio, líder da associação de camponeses da região, tornou-se conhecido por denunciar a ação de madeireiros ilegais na floresta amazônica.
Em novembro de 2010, quando foi palestrante no TEDX Amazônia – espécie de fórum internacional que reuniu mais de 400 pensadores de diversas áreas do conhecimento sob o tema da qualidade de vida no planeta – José Cláudio já havia dito ao público do risco que corria: "A mesma coisa que fizeram no Acre com Chico Mendes (líder ambientalista assassinado em 1988) querem fazer comigo; a mesma coisa que fizeram com irmã Dorothy Stang (missinária norte-americana assassinada no Pará em 2005) querem fazer comigo. Posso estar falando hoje com vocês e daqui um mês vocês podem ver a notícia que eu já faleci".
Na palestra, ele disse que em 1997, quando foi criado o projeto de assentamento extrativista, a cobertura vegetal na região chegava a 85% do território, com florestas nativas de castanha e cupuaçu. "Hoje resta pouco mais de 20% dessa cobertura", disse ele, que se auto-denominava castanheiro desde os sete anos. "Vivo da floresta, protejo ela de todo jeito, por isso vivo com a bala na cabeça a qualquer hora porque eu vou pra cima, eu denuncio (...) Quando vejo uma árvore em cima do caminhão indo pra serraria me dá uma dor – é como o cortejo fúnebre levando o ente mais querido que você tem, porque isso é vida pra mim que vivo na floresta e pra vocês também, que vivem nos centros urbanos", disse.
Sobre a sensação de medo diante das ameaças que afirmava sofrer, o castanheiro resumiu, na palestra: "Medo eu tenho, sou um ser humano, mas o meu medo não empata de eu ficar calado. Enquanto eu tiver forças pra andar, estarei denunciando todos aqueles que prejudicam a floresta".
Apesar de denúncias feitas em público, no entanto, nenhum deles tinha proteção policial. Segundo o delegado responsável pela investigação da morte, devido à falta de efetivo.
José e Maria eram lideranças na extração de castanheira na região e lutavam contra os madeireiros ilegais na floresta amazônica.
A CNBB está extremamente preocupada com esta realidade.
O assassinato de Maria e José Cláudio, com repercussão internacional, traz à memória Chico Mendes e Ir. Dorothy, vítimas do mesmo poder econômico que avança sobre as florestas. A violência que mata estas lideranças em nosso país, evidencia a urgência de um modelo de desenvolvimento que respeite e promova a riqueza das culturas tradicionais na proteção, convivência e produtividade dos povos da floresta”, afirmou em nota a Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade da CNBB.
 “Diante desse triste e lamentável episódio, que escancara a deficiência do Estado Brasileiro em defender os filhos da terra que lutam em favor da vida, só nos resta exigir que esse crime não seja mais um impune”, pediram os bispos do Regional Norte 2 da CNBB.
E continuaram: “Esse crime nos indigna e nos preocupa. É comum e constante o Regional Norte 2 da CNBB receber muitas denúncias de pessoas ameaçadas de morte. Entre eles há missionários, Bispos, padres, irmãs e leigos deste Regional. Sentimos que nossos gritos não são ouvidos pelos responsáveis pela apuração das denúncias e que só há movimentação por parte dos gestores públicos depois que uma morte é anunciada. Por isso exigimos que as autoridades estaduais e federais empreendam todos os esforços necessários para que esse crime seja investigado com a seriedade para que os criminosos, mandantes e executores, sejam punidos de maneira exemplar”.
Mas, e a outra noite?
Por ironia do destino ou revelação providente daquele que governa o mundo, na outra noite, quando se apagavam as luzes do dia 24 de maio de 2011 e a escuridão tomava conta do  nosso país, os Exmos. Sr. Deputados Federais aprovavam, por 410 votos a favor e 63 contra, o espúrio texto-base da reforma do Código Florestal, que irônicamente anistia os madeireiros ilegais do Pará, mandantes do assassínio da noite passada. Nem mesmo o sangue mártir de José Cláudio e Maria do Espírito Santo foi capaz de abalar os conchavos econômicos urdidos para fazer a vontade dos detentores do poder econômico deste país.
Entre outros pontos, o Código define a isenção da reserva legal para as propriedades de 20 a 400 hectares, dependendo do Estado da Federação.
O Código Florestal determina como deve ser a preservação de rios, florestas e encostas, combinada com a produção de alimentos e a criação de gado. Desde 1965, quando foi criado, a lei passou por várias modificações. Há 12 anos o Congresso tenta discutir um novo texto. E só conseguiu levar a cabo sua tarefa, na calada da noite de 24 de maio de 2011, por ser uma descarada defesa dos interesses do agronegócio e por promover a anistia de desmatadores.
Uma emenda aprovada por 273 votos a 182 rachou a base do governo levando os principais partidos governistas para lados opostos. O texto da emenda consolida a manutenção de atividades agrícolas nas Áreas de Preservação Permanente (APP’s), autoriza os Estados a participarem da regularização ambiental e, o pior, deixa clara a anistia para os desmates ocorridos até junho de 2008.
A expectativa de anistia a desmatadores com a reforma do Código Florestal deu impulso às derrubadas ilegais na Amazônia, diz o Ibama. Somente em abril, mais de 19 mil hectares de áreas de desmatamento ilegal foram embargados pelo Ibama em Mato Grosso, Pará e Amazonas, quase quatro vezes o total desmatado no mesmo período de 2010.
No sul do Amazonas, grileiros e pecuaristas do Pará e Rondônia estão promovendo uma devastação sem precedentes, diz o Ibama. "Estão desmatando tudo, achando que vão ser anistiados", disse Jerfferson Lobato, da divisão de Controle e Fiscalização do órgão.
Entre os meses de março e abril, o desmatamento no sul do Amazonas aumentou em 326% se comparado ao mesmo período de 2010. As multas chegam a R$ 7,2 milhões.
Depois de fato tão vergonhoso, o governo pretende reverter a situação no Senado e ampliar a punição do agricultor que for reincidente em crimes ambientais. Se não conseguir desfazer o quadro, a presidente Dilma Rousseff pretende vetar parte desses pontos.
É o mínimo que se espera de um governo dito do povo, dos trabalhadores e comprometido com o fim da miséria e mais parece dos madeireiros, grileiros e grandes agropecuaristas, senhores da terra e do dinheiro, que se arvoram em senhores da vida de quem levanta profeticamente a voz contra os seus interesses.
Foi na calada das noites de 24 de maio de 2011 que “mataram mais um irmão” e mais uma irmã e deram um golpe fatal no planeta terra.

Pe. Jean Poul
Varginha/MG

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