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quinta-feira, 30 de maio de 2019

Eu preciso preparar a minha última páscoa, aproveitar esta vida para aprender a morrer.




Queridos(as) amigos(as),
Na Quarta-feira da Semana Santa deste ano (2019), refleti com a minha comunidade paroquial, no Sermão da Soledade de Nossa Senhora é um dos meus prediletos sobre dois aspectos da nossa vida e morte. Gostaria de partilhar com vocês, hoje, aqui, a primeira parte e o primeiro e mais provocador aspecto.
Eis o texto da transcrição do sermão, feita pela amiga e companheira no trabalho da educação da fé, Lúcia Vieira Alfaro Dias, a quem agradeço penhoradamente:

«Nós ouvimos no Evangelho de hoje Jesus dizer aos discípulos: Ide à cidade, procurai um certo homem e dizei: O mestre manda dizer que o meu tempo está próximo e vou celebrar a Páscoa em tua casa junto com os meus discípulos” (Mt 26,18). E, tal como nós ouvimos o Evangelho do domingo de Ramos (Lc 19,28-40), o evangelista aponta que os discípulos fizeram como Jesus mandou e prepararam.
No domingo de Ramos, o Evangelho já nos alertava que os discípulos contemporâneos de Jesus faziam aquilo que Jesus mandava. Jesus mandou desamarrar o jumentinho e eles desamarraram o jumentinho. Jesus os precaveu de que alguém perguntaria por que eles estão desamarrando o jumentinho e disse o que eles deviam responder. E eles responderam, literalmente, aquilo que Jesus mandou e tudo se resolveu.

Hoje, Jesus manda os discípulos procurarem por um certo homem e dizer a ele que o mestre manda dizer que vai comer na casa dele a sua última Páscoa. Os discípulos vão e cumprem exatamente aquilo que Jesus mandou. E aí nós, então, somos chamados a nos perguntar: o que é que Jesus nos manda hoje? Na missa da tarde, eu refletia sobre isso com os idosos e os doentes, mas também com todos aqueles que os acompanhavam. Nós precisamos, hoje, preparar a minha última páscoa; nós precisamos, hoje, preparar a nossa última páscoa. Soledade – solidão pós-morte – tem a ver com a morte. E, como nós estamos nos preparando para a nossa morte? Cada um de nós tem que se perguntar em primeira pessoa, como é que eu estou me preparando para a minha morte? Pois, é ordem do Senhor, ir à cidade. Nós já estamos na cidade. Procurar um certo homem. Relacionarmo-nos uns com os outros e nesta vivência da cidade terrena relacionando-nos uns com os outros, preparar a nossa última páscoa, quando Deus nos levará para cidade eterna, quando Deus servirá para nós, na nossa última Páscoa, o banquete da vida eterna.
Nós estamos nos preparando, nós estamos pensando, rezando, refletindo, tomando consciência de que nós não somos eternos? A cada irmão nosso que parte, a cada funeral que nós vimos, a cada velório que nós vamos para nos solidarizar com a família enlutada, Deus está nos chamando à atenção e nos dizendo: a sua hora também vai chegar; você também vai passar pelos umbrais da morte, você também terá que ultrapassar esta porta que chamamos morte para entrar na vida eterna. E como é que você está se preparando?
O seguimento de Jesus não é só uma preparação para a morte. Claro que não! Jesus não é o Deus da morte, o Deus dos mortos, mas é o Deus dos vivos. Mas, o seguimento de Jesus comporta não só mas também, prepararmo-nos para bem morrermos, prepararmo-nos para, quando chegar a hora da nossa definitiva páscoa, nós termos experimentado a misericórdia de Deus e não termos medo de Deus. Lembrarmos naquela hora definitiva como Deus é bom e, então, lançarmos nos seus misericordiosos braços. Para que nós lembremos que Deus é bom na nossa definitiva páscoa, nós precisamos experimentar dia a dia a bondade de Deus. Essa certeza de que Deus é bom tem que estar no nosso cotidiano, nós temos que nos acostumar de tal forma com a bondade, com  a misericórdia de Deus que nós então não temamos a morte. Enquanto nós não experimentarmos abundantemente, nesta cidade terrena, a misericórdia e a bondade de Deus, nós vamos ter medo da morte e, tendo medo da morte, nós não nos prepararemos para ela. Nós vamos sempre negá-la, nós vamos sempre afastá-la do nosso coração e do nosso pensamento. Porém, chegará uma hora que nós não teremos pra onde afastá-la, vai chegar uma hora em que ou nós nos lançamos nos seus braços ou ela nos agarrará e nós não teremos outra saída.
Não é que a morte tem uma palavra definitiva. Não! Nós acreditamos, pela Páscoa de Cristo, que a Ressurreição é a Palavra definitiva, mas ninguém vai ressuscitar sem passar pela morte, ninguém vai experimentar a eternidade da vida sem experimentar no seu próprio corpo a caducidade da vida.
O que é a caducidade da vida? A caducidade da vida é essa experiência que nós fazemos todos os dias de olhar no espelho e descobrir um novo fio de cabelo branco; de olhar no espelho e descobrir mais um pé de galinha no canto do olho; de olhar no espelho e perceber a barriga que antes era firme e agora está despencada... Caducidade é a experiência da morte cotidiana, é a experiência que nós negamos, mas que nós não podemos negar de que, desde que nascemos, nós estamos morrendo um pouquinho cada dia.  Até o dia em que nós morreremos inteiros para ressuscitar inteiros.
A morte não pode ser para nós, cristãos, um monstro! A morte deve ser, e isso é o ideal, o que era para São Francisco, a irmã morte corporal. São Francisco assim cantava a morte: “Louvado seja meu Senhor pela irmã morte corporal”. Porque ela nos dá a vida verdadeira. Nós só viveremos de fato quando nós terminarmos de morrer.
Nós, às vezes, invertemos a lógica, achamos que primeiro nós vivemos, depois nós morremos. Não é assim. Primeiro nós morremos porque estamos morrendo desde que nascemos e, quando nós terminarmos de morrer, então, nós viveremos. Viveremos a eterna vida, viveremos a vida de Deus.
Por isso, eu queria provocar vocês nesta primeira parte da nossa meditação a isso, a preparar a sua páscoa definitiva.
Nós estamos celebrando a Páscoa de Cristo e Cristo hoje avisa aos seus discípulos: é nessa casa que eu vou comer a minha última Páscoa. Nós não sabemos quando será a nossa última Páscoa. Pode ser essa. Podemos nem chegar à noite da Páscoa. Mas, nós estamos nos preparando? Nós estamos caminhando não para a morte, mas para a vida? Nós estamos enfrentando a caducidade de nossa vida de modo a integrá-la no nosso viver? Eu dizia aos idosos e doentes, nesta tarde, e com isso termino esta primeira parte da nossa reflexão, que o melhor modo de prepararmos a nossa morte é abraçar a cruz. Quando nós éramos jovens era tão bom! A gente tinha tanta disposição! Vocês, jovenzinhos, ainda têm, mas isso logo passa. Daqui a pouco o joelho dói, daqui a pouco a coluna trava, daqui a pouco o ombro já não responde como respondia antigamente, daqui a pouco vem a sinusite, a artrite, a artrose, o reumatismo e tudo mais... E daqui a pouco, antes que nós pensemos, antes que nós nos preparemos, nós estaremos pedindo a alguém: Você pode me levar à igreja porque eu já não consigo ir sozinho? Você pode me levantar dessa cadeira porque eu já não consigo me levantar sozinho? Você pode me ajudar, me barbeando porque eu não já consigo fazer sozinho? A melhor forma de nós nos prepararmos para a nossa páscoa definitiva é abraçar a nossa cruz – e eu dizia aos nossos idosos – sem que a nossa cruz nos azede. Porque isso é muito comum, que quando nós começamos a experimentar os limites da vida, em vez de nós nos adocicarmos, nós vamos nos azedando, nós vamos ficando pessoas amargas, pessoas que não conseguem integrar a sua própria limitação. Então, vão ficando bravas, mal educadas, azedas. Vocês não conhecem velhinhos assim? Vocês não conhecem doentes assim? Por quê? Porque nós precisamos integrar a nossa limitação. É para isso que nós nascemos. Nós nascemos para morrer, paulatinamente, e quando experimentarmos o máximo da nossa limitação, quando já não conseguirmos vir à Igreja nem sequer mais vivos, mas quando trazidos num caixão porque já não somos capazes nem de pedir para nos trazer e nem de impedir que nos tragam, aí nós teremos experimentado o máximo do nosso esvaziamento, como Cristo experimentou na cruz o máximo de seu esvaziamento! Então – como diz São Paulo nós poderemos deixar Deus ser tudo em nós. É isso que nós queremos, é isso a Páscoa! Deus ser tudo em nós!
Mas, enquanto nós formos tudo em nós, não tem espaço para Deus. Como é que Deus vai ser tudo se eu sou o orgulho em pessoa: eu faço, eu aconteço, eu não preciso de ninguém, eu é que sei, eu é que mando? Aonde o “eu” é soberano, Deus se rebaixa e espera o dia em que esse “eu” for derrotado. Porque no caixão não tem mais “eu”; no caixão não dá pra gritar que eu não quero ir. Não tem mais isso. No caixão, ninguém vai dizer eu não sei o caminho; ninguém vai dizer isso no caminho. No caixão, o“eu”está morto para que Deus seja tudo em nós!
Mas é sábio, é sábio preparar-se para esta experiência. O que não é sábio, é negar e dizer: Não! Vamos deixar para lá. Quando ela vier a gente resolve.
A nossa fé é um instrumento para que nós nos preparemos para a Páscoa definitiva. É preciso, meus irmãos e minhas irmãs – por mais difícil que esta frase pareça – é preciso aproveitar esta vida para aprender a morrer. É preciso aproveitar esta vida para bem morrer porque a nossa salvação está em jogo até a hora da nossa morte. E é por isso que nós rezamos sempre a Nossa Senhora: Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Porque naquela hora, a da nossa morte, nós podemos perder ou ganhar a nossa salvação. Depois da nossa morte está tudo definido, não há mais mudança, aquilo que é, é; aquilo que não é, não é. Para que nós não corramos o risco de, no desespero da nossa morte, porque não aprendemos a esperar e confiar na misericórdia de Deus, nós percamos a nossa salvação.
Pratiquemos a sabedoria, sejamos sábios, pensemos, rezemos, reflitamos e preparemos para nossa morte, para o dia da nossa Páscoa definitiva».

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